você gira o revólver sobre a mesa num  jogo sádico e o cano de grosso calibre acaba sempre apontado para o meio da minha testa. bem no meio dos meus dois olhos vazados. eles saíram de órbita muito antes da primeira ameaça. por isso eu só olho pra frente. eu nem reajo. você não sabe, mas eu nem vejo se você se diverte ou se sofre com isso. meus dois olhos fugiram muito antes da primeira ameaça.


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fade out. 
"wish you were here".
lembro de ter chorado da última vez que ouvi essa música, enquanto assistia você descolar as falanges da mesa da cozinha. você apertava o punho com força e olhava pra luz fria que piscava no teto quando a música parou de tocar. como quem tenta evitar o primeiro soluço. como quem tenta afastar a solidão de sempre, provisoriamente. aquela mesma solidão que você não permitiu que eu guardasse no sótão embaixo do vestido branco que eu também não pretendia usar. aquela mesma que você pediu que eu pintasse com cores vibrantes e disfarçasse de alegria nos dias de chuva que são mais raros. aquela que você dizia que tanto prezava, enquanto eu só queria estar ali ao lado do abajur alimentando minhas alergias com algum livro empoeirado. seus dedos ainda estão na mesa da cozinha. eu não limpei. não limpei nenhuma marca que você deixou. adquiri um novo hábito estranho: espalho post-its pela casa pra não esquecer por que estou aqui e você não está. deixo um rastro que não pretendo seguir, pra lembrar que eu escolhi o outro braço da bifurcação. pra não voltar. sabe como é,  as minhas memórias só contém sorrisos que escaparam pelo canto da sua boca e isso não me ajuda a esquecer. ao contrário de você, eu sou covarde. sempre tive um puta medo de olhar pra trás e dar de cara com os monstros que tranquei no sótão embaixo do vestido branco. rezo pra que eles fiquem no lugar que eu tinha reservado pra sua solidão e não assombrem a minha. à noite encosto o nariz no vitrô e conto os náufragos que passam pela avenida sem rumo, como eu sempre fazia te esperando chegar. foi assim que deixei aquelas marcas meio triangulares na janela do seu quarto. com um pouco de vapor, elas ainda revelarão breguíssimos 'eu te amo' que escrevi por ali em letra de mão.


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Visto do chão, você parecia ainda mais esquisitão. Meio patético com seus meiões pretos e seu enorme headphone, se balançando desajeitado embalado por algum som sessentista. Eu me divertia te observando totalmente alheio à minha presença e apenas inalava alguns centímetros cúbicos de ar, poeira, ácaros, germes e bactérias mutantes que alegremente coabitavam aquela pequena comunidade biológica você chamava de lar. Você se virou e resmungou alguma coisa sobre redecorar. De primeira não entendi bem onde você queria chegar com aquele papo. Redecorar. Tudo já estava, havia tempos, na mais perfeita desordem. Não convém mudar certas coisas de lugar. É, certas coisas são imutáveis e a gente simplesmente tem que aprender a conviver com elas - e guardar uma dose providencial de penicilina no fundo de alguma gaveta. É claro que aproveitei a deixa pra reclamar da geladeira, mesmo sabendo e mais uma vez sublinhando, que você jamais se livraria dela - você não poderia dormir sem aquele barulho infernal que ela faz. E da incômoda e insalubre inversão de cômodos que sei lá por que tinha acontecido no seu apartamento. Cozinha não é lugar de dormir. Mas é o seu bunker e ele só poderia ser assim do jeito que é. Um caos, esquisitão e divertido. Tipo você, que se balançava com seu headphone e sua indefectível indumentária acrescida de meiões por conta do inverno. De repente eu entendi que o papo de redecorar era uma tentativa de me agradar. Logo, você não estava alheio à minha presença - você simplesmente não sabia "onde colocar as mãos", ou algo assim. Quer saber? Ali do chão, no meio da bagunça que invariavelmente nos cerca, eu percebi que não precisava mesmo de nada pra amar você. E que algumas coisas são imutáveis e inofensivas. A gente só tem que aprender a conviver com elas e manter uma dose de penicilina no fundo de alguma gaveta. A gente podia tentar. E talvez fabricar penicilina. Você sabia que ela é obtida a partir de um fungo, do bolor do pão? Pode crer, a gente tem tudo pra dar certo.

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